terça-feira, 25 de novembro de 2008

Prazer, São Paulo

Copan. Muito da minha infância foi vivida ali, na casa da vovó. Eu, encolhida dentro do carro, via o centro da cidade passar sem perder nem um detalhe.
- Cuidado Carolina, é perigoso! Dizia meu pai quanto eu tentava desesperadamente descer para comprar balas na banca em frente ao emblemático edifício. Ele tinha razão, e eu sabia. Tinha a imagem gravada na memória de uma jovem que levava alguns livros nos braços parada no meio de 3 outros jovens, um deles agachado olhando debaixo da saia dela. Lembro da minha indignação ao perceber que ela chorava e que ninguém, absolutamente ninguém, podia fazer nada. Eles estavam armados.
Medo e admiração. Um verdadeiro amor platônico por toda aquela região. Um amor que me levava a um vertigo incrível e inevitável.


****** Luva na mão, calças manchadas de tinta e la vão eles. E como acontece algumas vezes, lá vai ela junto, aquela curiosa que adora caminhar pelo centro com gente que sabe exatamente onde pisa. Passamos pelo Ipiranga, Brás, Mooca, Cambuci, em cada um deles, uma porta pintada, um muro escrito, uma piada entre amigos. Nenhum nome seria melhor e mais irônico que VLOK, é por isso que ele encaixa como uma peça de quebra-cabeça na vida e rotina destes verdadeiros artistas. Por fim chegamos onde queria eu: o coração do centro. Simplesmente não canso de lá.
As histórias iam aparecendo diante de meus olhos. Eu mal podia falar, faltava ar, faltava tudo.
Cracolândia. A zona é perto de onde fica a Estação da Luz, mas no pedaço de rua que a coisa realmente pega eu nunca havia estado. E a pedidos me levaram. Eu vi, arregalei meus olhos para não perder nem um movimento. E tudo pareceu acontecer em câmera lenta. Todos os rostos retorcidos, perdidos, todos os cachimbos, todos os cigarros e cobertores, crianças, meninas e toda a paranóia de quem não sabe mais seu lugar no mundo.
Ricardo, 8 anos. Estava cansado. Seus pequenos ossos marcavam a camiseta velha e o moletom cheio de mucos nas mangas. Ele dizia que seu pulmão ardia. Tinha fome de comida e não da pobre barrinha de cereal que lhe ofereceram. Eu, no ímpeto ridículo de querer salvar que seja uma formiga naquele antro perdido, me agarrei no Ricardo e junto a um colega levei-o até o bar da frente. Ricardo não podia entrar, só nós. O cozinheiro abriu uma exceção e Ricardo pode ficar ali conosco. Pagamos um prato de calabresa e arroz, a pedidos do pequeno. Ficou combinado entre nós que Ricardo esperaria seu prato e comeria junto à parede onde pintavam o VLOK. Alguns minutos depois de chegarmos de volta à parede, chega Ricardo, chorando e levando apenas uma garrafa pet de suco das duas que havíamos comprado.
- O dono do bar me deu com a garrafa na cabeça, disse pra eu sumir de lá.
O choro era desesperador. Eu sai correndo, e o Gustavo atrás de mim, em direção ao bar.
- Carol, cuidado! Ele pode estar com gente mais velha que vai te roubar ou fazer alguma maldade com você.
O Gustavo sabe o que pode acontecer com quem não toma as devidas precauções em situações como esta. Já eu só pensava no Ricardo, estava com o coração na mão, queria voar na cabeça do tal homem do bar. E fui, junto com o Gustavo, saber o que tinha acontecido. O dono do bar negou, obviamente, e me entregou a bolsa de comida. Era claro que o menino estava falando a verdade, aquele homem com olhar gelado e maldoso já não tinha coração e não posso culpar-lo. Com certeza ele já foi testemunha de tantas desgraças por ali que já julga estas pobres crianças como perdidas. Será?
Voltei rapidamente para a parede pintada com a comida nas mãos, mas Ricardo havia desaparecido. Ele foi embora, foi embora e eu, mais uma vez, não pude fazer nada, absolutamente nada, apenas sentir de novo o vazio no peito da nossa pura impotência.

Um comentário:

Ana Clara disse...

Conhecer a verdadeira São Paulo, o verdadeiro Brasil doem os olhos...o coração..a alma...
Quantos Ricardo não existem por ae.
Quantos donos de bares não existem.

E quantos de nós, fechamos os olhos para muita coisa. E por muitas vezes ficamos cegos com outras milhares.